uma carta para

Waldemar-von-Kozak11

ilustração: Waldemar von Kozak

falo para aqueles que não compreendem a profundidade de uma rotina e sobretudo para aqueles que veem no dia a dia uma sucessão de eventos monótonos jogados ao vento de suas preciosas vidas,

é preciso sentir que uma intensidade sobrenatural se esconde no emaranhado dos lençóis que amassamos juntos, sejam eles os mesmos lençóis brancos da semana passada ou do mês passado, não importa, são apenas lençóis, o que importa é a forma como nos amassamos, uma perna é transpassada à outra sempre de uma maneira diferente, os sulcos que se cria nos lençóis sempre estarão ali, como resquícios das experiências que compartilhamos; e se a luz da cozinha está acesa é a mesma luz com que jantamos juntos e almoçamos juntos, tudo adquire um sentido de familiaridade e paz e, por isso mesmo, de uma intimidade que sobe até os cabelos,

porque, dando um exemplo ingênuo, você nunca sente a luz da cozinha da casa de seu amigo de infância da mesma forma com que sente a luz da cozinha da nossa casa, porque nossa casa está impregnada, em cada canto sulco vinco quina, de intimidade nossa, de poros abertos que deixam escapar um suor elétrico

e nessa rotina tudo isso pode se repetir por dias consecutivos, mas jamais o toque, os lábios na pele, jamais o contato entre dois corpos e duas almas será igual um dia após outro; e cada vez que seu corpo me possuir por inteiro naquele primeiro momento, será sempre a primeira vez que estarei sentindo essa força animal, para logo depois embarcarmos na sintonia dos movimentos e sentirmos o corpo flutuar acima do céu

uma praia, montanhas ou cabanas não faz sequer diferença. É nessa mesma cama que nos abriga que abriga também nossos abismos de sempre.

 

~ lis

póstumo

gostaria que os meus pensamentos hoje fossem triviais. Mas minhas maiores questões agora são sobre doença, velhice, fragilidade, debilidade, corpo enfraquecido.

acordo e durmo com esse peso indefinível dentro de mim, de ser tão profunda a dor por ver e viver todos esses aspectos da vida, e tão profunda a ruína de todos os valores que outrora tive como certos. Nada mais importa. O teatro narcisista de todo dia, o impiedoso culto ao corpo, a valorização da mesquinharia, os sagrados momentos perdidos entre cliques virtuais. Toda a ilusão. Nada disso importa. Só o silêncio, o mistério, a quietude de uma vela acesa, o infinito de dentro de uma respiração, os abraços e beijos cotidianos, arrumar a cama, colocar alguém que se ama pra dormir e desejar do fundo da alma que uma força suprema ao menos abençoe tudo.

a minha mãe.

só isso importa.

 

junho/19

da alma

Em certos momentos, sem circunstâncias específicas, nas formas mais variadas, eu sinto como se minha alma se encaixasse em seu lugar.

Quase ouço o clic de quando a forma perfeita foi encontrada.

Nessas horas, sinto aceitar cada movimento da vida; tudo parece natural, mesmo as paradoxais ambiguidades. Eu fico bem. Todas as amarras parecem sair.

É como se eu aceitasse a minha existência.

 

janeiro, 2017.

pequeno coro bêbado

Eu não sou mais
Quem você
Deixou
Amor
Vou à Lapa
Decotada
Bebo todas
Beijo bem

Madrugada
Sou da lira
Manhãzinha
De ninguém
Noite alta
É meu dia
E a orgia
É meu bem

(Beijo Sem - Marisa Monte, Teresa Cristina e Pedro Baby)

Samba pela avenida, a dois passos da ponte a noite pode se tornar infinita. Lembra Eduardo Marciano nos acessos boêmios de cantar trepando nos galhos de concreto. Abrir os braços e ocupar toda a rua, abraçar toda a cidade, amar todos os indivíduos, expressar para todas as janelas que a noite, a noite é rara. O passo cambaleante, os amigos atropelando-se pelas guias: vem aqui que isso não acaba nunca, o ser só se torna ser quando traz à superfície o inconsciente, que inconsciência?, estamos todos aqui agora. Vamos parar o tempo, olhar para os rostos encavalados nos terraços julgando com suas velhas teorias o novo sangue bêbado das ruas. Pegue mais um copo e beba, beba a Dionísio por tão perfeita embriaguez de espírito em tempos tão retidos. É o que resta, afinal, longe desses muros, a dois passos da ponte; a fumaça, o copo cheio, a lua.

 

anacronicamente: 2012.

seres místicos

CATARINABASSEL_IDEAFIXA

Catarina Bassel via IdeaFixa

2018 é um ano que começou como furacão. Me fez vendaval.  Quero escrever uma ode à São Carlos. Cidade que ainda não entendia das vezes, poucas, em que eu a visitava rapidamente. Mas como uma misteriosa moça, ela foi gradualmente me revelando as formigas e os besouros criativos que andam pelas ruas de madrugada, enchendo as salas e quartos de fumaça, e os céus com o brilho de suas estrelas. Alguma coisa aconteceu aqui, que me fez pegar o lado esquerdo dos trilhos, aquele pelo qual há muito andei, onde se pode encontrar os insanos. Os loucos de amor, ferozes de vida e luz, os que são iguais a mim, os de vinte e tantos, andrógenos que se equilibram nos saltos e mergulham sempre de cabeça, sempre de cabeça. Os de peito aberto. Gemem e uivam pra lua. Não são os velhos lobos, mas os novos. O novo sangue que ocupa as ruas, as novas vozes que enterram o passado, corpos que se infiltram em rígidas estruturas e gritam lá de dentro o amargo das mudanças. Seres de coragem que convocam união e enfrentam seus caminhos como malabaristas nos sinais. São Carlos, uma cidade que não é muitas em uma só, que não perde de vista suas fronteiras, abriga seres místicos que me ensinam a magia de transformar histórias em memórias, habitar as pessoas que estão à nossa volta, e assim, viver para sempre nas poeiras do tempo…

 

o infinito das coisas

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Exercite plenamente a sua mente, sabendo ser apenas 
um exercício. Construa artefatos, resolva problemas, 
explore os segredos do universo. Usufrua de todos os 
seus sentidos. Sinta alegria, pesar, riso, empatia. 
Leve a memória em sua bagagem. Eu me lembro de onde 
vim e como me tornei humano. Porquê estive por aqui. 
Agora, minha partida está marcada. 
(...) Não só a eternidade, mas o infinito.

(do filme Waking Life, 2001, Richard Linklater)

 

Penso na infinidade. E em mandalas. E em padrões que se repetem. Lembro dos textos lidos sobre o universo e a expansão, a infinitude da vida, fractais, reencarnação, livro tibetano dos mortos, frequências e realidades paralelas. Depois penso na linha do tempo evolutiva que se desenrola por trás de nós como um oceano do tamanho de mil oceanos de tempo, mil anos, quatrocentos mil anos, duzentos milhões de anos; na biblioteca queimada de Alexandria, nas estátuas gigantescas soterradas no mar, nas enciclopédias de capa dura enfileiradas em centenas e centenas de estantes, nos livros queimados da Inquisição (e também na fumaça que foi levada pelos ventos sussurrando palavras), nas páginas impressas do jornal tic tac a cada manivela rodada, e cada par de mãos que folheiam os papeis. É muita coisa produzida no mundo, segundo a segundo.

Depois entro em mim e observo o interior enigmático que é a minha (e sua) cabeça. As associações diárias, os momentos de profundo insight poético e espiritual, tudo interligando-se com as memórias imaginadas, pensadas, criadas; as frases que aparecem como névoa, flutuam pela testa e viram éter. Tudo o que pensei e não foi dito. A ânsia em mexer os dedos e transformar em palavras as abstrações internas, as opiniões. E depois só penso: por quê escrever? Como poderia fazê-lo? Tudo já não foi dito e feito nessa vida?

Como há tanta e tanta coisa, palavra, ar, som, voz, sendo dita, escrita, impressa, engolida, projetada, compartilhada, gerada, transformada em bits, em cores, em versos, em filmes, em códigos, genéticos? Se a vida é imensidão, qual o destino? Qual o propósito? Não é preciso um propósito? É preciso um propósito?

O mundo é uma prova para testar se podemos nos elevar às 
experiências diretas. Nossa visão é um teste para saber 
se podemos ver além dela. A matéria é um teste para a 
nossa curiosidade. A dúvida é uma prova para a nossa 
vitalidade. Thomas Mann escreveu que preferiria participar 
da vida que escrever. (...). Assume-se que não se pode 
compreender a vida e viver ao mesmo tempo. Não concordo 
inteiramente. Ou seja, não exatamente discordo. Eu diria 
que a vida compreendida é a vida vivida. Mas os paradoxos 
me perturbam. Posso aprender a amar e fazer amor com os 
paradoxos que me perturbam. E em noites românticas do eu, 
saio para dançar salsa com a minha confusão.

(Waking Life)

Penso algo e escrevo um livro. Alguém o lê. Comenta-se num círculo. Alguém se propõe a estudar. Alguém imprimiu o livro, cópias e cópias dos mesmos versos. Uma livraria pôs à venda. Depois alguém encontrou aquele mesmo livro em um sebo, já cheio de orelhas e digitais. Um congresso é feito sobre o estudo do estudo dos textos feitos sobre o livro. Alguém liga uma câmera e dá sua opinião. Acontece às vezes de também virar música. Compõe-se um dos versos. Torna-se referência – alusão vaga. As palavras fazem alguém sentir alguma coisa. Uma pessoa ri. O escritor também.

Visualizo esse caminho das coisas acontecendo ao mesmo tempo em qualquer canto do mundo, e então, às vezes, isso pesa. Pois é como se eu não soubesse o que fazer diante de tamanha grandeza. Talvez na pequenina cabeça humana não caiba espaço para a compreensão exata do que é o infinito das coisas.  Mas ao mesmo tempo que os caminhos da vida evolutiva parecem infinitos e atemporais, há alguma coisa de efêmero em cada instante vivido, como se fizéssemos e não fizéssemos parte da existência. Por que escrever o que penso? Como poderia fazê-lo? Nesses milhares de anos de existência de milhares de centenas de pessoas, tudo já não foi dito? Quem sou eu, esse minúsculo ponto num universo enciclopédico?

Tento, por vezes, procurar por algum sentido. Conheço o mundo com as perguntas. O sentido está então no meu eu, na minha individualidade, no que faz sentido pra mim dentro da minha concepção de mundo e pensamento e ética? Fazemos parte dos dentes de engrenagens dentro de engrenagens. Um pensamento então me surge: não, não podemos entender a imensidão universal com o nosso cérebro, caminhando unicamente pela via racional. Nós temos um terceiro olho. Nós temos intuição. Temos uma alma, como uma inteligência superior que se comunica por outras frequências de energia. Temos um peito que se abre para o mistério. Só assim podemos compreender que: não adianta. Estamos envolvidos com o mundo.

Vamos, pois, escrever. Pintemos a arte. Sejamos transgressores aleatórios. Deixem que as mãos procurem as habilidades, que nossos olhos e ouvidos se fundam; riam das palavras soltas pelo ar, vejam, comprem, leiam, rabisquem, rasguem, bebam, se afoguem, limpem as sujeiras, sujem o cotidiano, movimentem. Vamos viver. Só temos o agora, e só podemos aceitar.

Na verdade, só existe um instante, que é agora. 
E é a eternidade. É um instante no qual Deus está 
apresentando a seguinte pergunta... 'Você quer fundir-se 
com a eternidade, você quer estar no paraíso?' E estamos 
todos dizendo: 'Não, obrigado. Ainda não'." Logo, o tempo 
é apenas o constante "não" que dizemos ao convite de Deus. 
Isso é o tempo. Não estamos em 50 d.C., como não estamos 
em 2001. Só existe um instante. E é nele que estamos sempre. 
Então ela me disse que esta é a narrativa da vida de 
todo mundo. Por detrás da enorme diferença, há apenas uma 
única história... a de se ir do não ao sim. Toda a vida é: 
"Não, obrigado. Não, obrigado". E, em última instância é: 
"Sim, eu me rendo. Sim, eu aceito. Sim, eu me entrego". 
Essa é a jornada.

(Waking Life, 2001, Richard Linklater)

trans formações

já há um tempo parei de escrever, os textos do blog, a coluna no jornal, as palavras que eu guardava só para mim. Tentar voltar agora traz inegavelmente a sensação de um mundo que se transformou, como o tempo numa redoma de vidro passando e passando, folhas caindo e inverno chegando, e depois verão e sol e inverno tudo de novo.
Antes fosse apenas climático. A transformação foi toda em um novo estado de ser, e em um novo mundo exterior, com novas questões e complexidades. Muitas.
É como se não fosse mais possível escrever como antes, e apesar de ser natural a muda de pele, é algo que nos faz pensar. Se não escrevo mais como antes, se não posso escrever como antes, o que consigo entender do meu momento atual, em relação ao passado?
Primeiro, o vocabulário. O espaço acadêmico da faculdade, as aulas esperadas de teoria, o contato com novos pensamentos e autores e as iluminações que vira e mexe surgiam por conhecer a criação imagética de algumas obras fantásticas. As provocações do conhecimento. Os constantes trabalhos obrigatórios que, antes de merecerem as eternas reclamações, serviam para nos pôr em movimento. Os alunos zanzando pelos corredores. E, no meu caso, o tempo livre dedicado a ler tudo o que eu sempre quis conhecer. Vivência, novas palavras. O vocabulário estava em seu florescimento. Experimentava um estilo aqui e outro ali, achava o ponto alto conhecer Rimbaud, me preparava para Goethe e Tolstói, Dostoievsky e Herman Hesse arrepiaram alguns pelos, aproveitava prateleiras da biblioteca da faculdade que, na minha ignorância, parecia enorme. Hoje conheço maiores. Os dedos eram ágeis e às vezes se adiantavam a mim. O impulso para escrever não precisava de um catalisador. Eu pensava crônica, eu pensava poesia (ainda que o meu intenso autojulgamento e autocrítica me deixassem incomodada por dar ao que eu escrevia tão sofisticada categoria). Afinal, era o tipo de vida que eu estava levando.
finda a faculdade, começo a trabalhar, meu tempo é dividido em horário comercial, aprendo relações humanas e frustrações, potências e barramento. O corpo sente, e muda. Não consigo dividir meu tempo. Não leio mais. Meu contato com cinema, agora sem alguém para me convidar a conhecer novos caminhos, resume-se ao caminho de menos resistência. Fico ligada então a questões mais… comerciais. O deslumbramento com aquelas produções outsiders sumiu, como também sumiram as produções outsiders do meu convívio. Vez ou outra. Os novos pensamentos e autores, as provocações do conhecimento, o estímulo, precisamente o estímulo, ficaram adormecidos. Não há pessoas zanzando no meu convívio. Fico sentada em uma sala solitária diante de um computador, prestando serviço para publicitários ranzinzas e mal educados. Chego em casa com a têmpora latejando e só penso em jantar. Não leio mais. Meu vocabulário se reduziu, foi enxugado, sento para escrever e pareço mimetizar as páginas da internet que leio diariamente. As frases se tornam curtas e para economizar tempo escolhe-se as palavras mais fáceis, que vêm à primeira vista. Sinto-me como um redator freelancer vendendo seus serviços por cinco reais um texto de oitocentas e cinquenta palavras sobre nutrição. Toda uma forma de pensamento: por esse preço, não vou quebrar a cabeça. Então você escolhe as palavras mais fáceis e a construção mais lógica e tradicional de frase, de sentido. Nada muito profundo. Afinal, o que vale é o preço, eu valho o preço, mesmo que por cinco reais. É mesmo? De forma que, quando você lê e lê e lê e lê enquanto navega por ondas cibernéticas, tudo parece igual. Torna-se seu vocabulário. Você pensa em tempo, em divisão de horas, cabe aquele livro de Nietzsche agora? Torna-se seu jeito de escrever. Porque tudo isso se torna, enfim, o tipo de vida que estou levando.
bom. As questões complexas vão se interpelando. Então a culpa é do trabalho? Do dinheiro? Estudante dependendo de dinheiro paterno é fácil mesmo. Sim, vozes. Há culpa e não culpa. Afinal, falo de mim apenas. E de escolhas. Aquela coisa, dos 100 caminhos que podemos escolher. Muitos outros trilham rotas paralelas, outros perpendiculares, outros são oblíquos ou estão à margem. O mundo começa a se abrir, muitas vozes surgem, é tudo muito. Eu li hoje: num mundo globalizado, somos cidadãos do mundo e, portanto, havendo outras oportunidades, temos todo o direito de ir atrás delas.
à parte isso, pode ser que eu tenha usado óculos escuros durante um tempo depois que saí da faculdade. O ambiente lá pode ser uma bolha ou não, e os professores sempre se referiam ao “mundo lá fora” como difícil, diferente. Mundo lá fora. Que expressão engraçada.
seja como for, um estado de ser infeliz em determinado lugar no horário comercial também te molda. A coisa mais legal do mundo é ver como existem pessoas com estados de ser tão diferentes em situações iguais. Há aquelas que estão infelizes, mas são ativos. Os que conseguem abstrair e construir seu mundo ideal nas horas vagas. Os que se afogam na tristeza. Os que permanecem inertes. Os que nem pensam. Os que pensam e continuam. Os que estão infelizes, mas não querem continuar. São os caminhos, vê?
Segundo, a superficialidade. Pode ser um ponto subjetivo, mas tem influência sobre mim. Em algum ponto, vi que tudo ao redor era desprovido de profundidade e consistência. Um mundo flutuava em noções, pensamentos, ações, comportamentos, palavras, sentidos, que só batiam em uma casca. Todo o resto passava ignorado, ou pior, dissimulado. Palavras viravam mercadoria. Orgânico, saudável, equilíbrio. Os comportamentos passam só pela primeira leitura, a mais instantânea, impulsiva, e assim se dão por satisfeitos. Há muitas discussões que poderiam ter sido evitadas, ou levadas a outro nível. Há muito medo e gente na defensiva. Ao mesmo tempo que há, curiosamente, um intenso trabalho de divulgação pessoal. De aprimoramento da imagem. Será que passa por um aprimoramento completo, mental, espiritual e físico? Ou é apenas um retoque de imagem como um programa de edição? Para se ajustar a valores de mercado.
ao mesmo tempo, agora você é cidadão do mundo, da cidade, do seu bairro, da comunidade da sua casa. Multicultural. Se o que eu enxergo ao meu redor é uma casca superficial, também pode ser que enxergo o reflexo de mim mesma. Será? Às vezes compreender passa pelos incômodos. Então é isso, estou também vivendo na superficialidade? Que terrível.
mas deve ser isso mesmo:  de um ponto ao outro, eu ainda não me encontrei. Da experimentação ao completo abandono, que trajetória mais irregular para o que eu pretendia! Não, não, devo passar agora para o passo adiante (ou um passo atrás), que se situa precisamente onde deveria ser o meio desses dois estados – a vivência, a experiência e o presente. Se todo início é o início e o final é o abandono, então devo estar no meio. Conhecendo os dois opostos, posso decidir onde me encontro. Pois a minha verdade não está sendo esta – apressada, apática e desconectada do conhecimento.
movimento!

a grande questão

estive pensando: como se luta contra a banalidade?
a quietude é um estado de espírito, uma vivência internalizada das sensações. Falar exige por demais energia e pensamento lógico, aliás, mais do que esses dois fatores. Falar assume uma ação intrincada e complexa, mesmo que seja a coisa mais frívola a ser dita, ‘como o tempo está frio’; existe a sua posição como comunicador e aquele com quem você se comunica, se comunicamos, é preciso que nos façamos compreensíveis. Não existe motivos para invertemos a sequência lógica da frase do tempo estar frio por qualquer outra sequência que fosse, a princípio, arbitrária ou anarquista. A outra pessoa não entenderia, ou até poderia fingir entender, mas em algum momento rompeu-se o fio da comunicação e mesmo que tenha sido uma frase muito banal para ser dita, foi uma perda desnecessária de energia e motivação vazia, nula. A troco de nada. Afora isso, quando falamos, externalizamos em palavras o que estamos pensando, e o pensamento em sua maioria das vezes tem uma formação nebulosa. Quando ele existe internalizado, suas conexões são feitas rapidamente, mesmo que de maneira um tanto indefinida. Ainda no caso frívolo, por exemplo, podemos pensar de modo subjetivo sobre o porquê estar frio. É capaz de os pensamentos vagarem de um extremo a outro. Se formos verbalizar, no entanto, pegamos apenas uma fração disso para ser organizada em uma sentença lógica. Então buscamos palavras e as entonações adequadas para aquilo que se quer dizer, porque não basta apenas as palavras em si, pois a ela junta-se todo o gestual e a melodia da fala. Ao falarmos do tempo frio, podemos dizer de várias maneiras. E não pensamos na frase pronta de antemão, mas de alguma maneira ela vai se formando à medida que tentamos clarear a fração do pensamento para aquela pessoa que está nos ouvindo.
falar é complicado. Ao menos para mim, de alguma maneira que não entendo, tem sido complicado. São muitas coisas a serem levadas em conta: a escolha das palavras, a maneira com que você se comunica, a coerência com aquilo que lhe é interno e está sendo externalizado, é isso, sobretudo a coerência!, e ao final das contas, a rejeição da banalidade. Ao menos esse último é motivo pessoal meu.
e por que tudo isso?, você poderia se perguntar. Talvez exatamente porque se não estamos sendo coerentes, então estamos falhando em nossas relações humanas. E encontrar a coerência entre aquilo que está no seu pensamento e a forma com que você expressa verbalmente seu pensamento não é pouca coisa, pelo contrário, é algo de importante! Não deve ser visto com leviandade! É a expressão humana.
Claro que acabo falando aqui de uma coerência relacionada apenas à expressão, mas isso acaba se refletindo em um todo. Você não saber falar de maneira clara e precisa aquilo que você quer falar é um problema (essa é uma frase que poderia ter saído de um livro tolo de autoajuda, perdoem-me), porque você não estará se expressando por inteiro. Como consequência, sua relação com aquele que o ouve também não é completa, pois você não se fez entender por completo.
a isso somam-se também as diversas sutilezas perceptíveis. A cada segundo que você faz uma pausa para se lembrar de alguma palavra, sua credibilidade perante os outros cai.Imperceptível, dá para perceber pelo desvio de olhar que o outro faz nessa hora, como se te achasse um indivíduo muito flutuante sem clara certeza de suas palavras. Como uma dúvida.
a comunicação humana, no entanto, é repleta de remendos e tropeços e imperfeições. Sim, de fato. Está sujeita à maleabilidade. Mas não será talvez isso a causa de tanta incompreensão no mundo?
não falo de boa oratória, mas talvez de articulação. Ter a capacidade de articular seus pensamentos de forma coerente, tanto com o que se quer falar quanto na forma com que se pretende falar. Se ao ser humano fosse dado apenas o direito de viver isolado, jamais – pense, jamais! – necessitaríamos disso. Não seria preciso falar! Por que falaríamos? Com quem? Poderíamos, é claro, conversar sozinhos com as estrelas, mas a comunicação seria outra, talvez. Mais louca, mais livre. Talvez emitiríamos sons, como os animais, embora o som também possa fazer parte de uma estrutura lógica.
mas enfim. Ao final das contas, como já disse Tarkovski, a experiência do autoconhecimento é o único objetivo da humanidade; o homem “está eternamente estabelecendo uma correlação entre si mesmo e o mundo”. E essencialmente é isso. estamos o tempo inteiro nos relacionando de uma forma ou de outra, com outros e com nós mesmos. Mediando esta relação estão diversas formas de expressão, entre elas a fala. E podemos ser incompreendidos em muitos níveis. Talvez resta a cada um se perguntar em até qual medida se quer ser compreendido.
a minha, na mais completa e profunda possível. A banalidade é apenas a superfície de um oceano…
e ao se buscar essa comunicação mais completa e profunda é que se conhecem os e seus limites. (Acho que aí reside a minha atual luta interna)…

em tempo: Tarkovski fala por mim! Ainda que fale sobre cinema, veja o que ele diz sobre as palavras:
“O roteirista pode (…) escrever, simplesmente: ‘Os personagens param junto à parede’, e prosseguir, acrescentando o diálogo. No entanto, o que há de especial nas palavras que estão sendo ditas, e o que elas têm a ver com o fato de se estar de pé ao lado da parede? O sentido da cena não pode estar concentrado no texto dos personagens. ‘Palavras, palavras, palavras’ — na vida real, estas têm pouco significado, e só raramente, e por muito pouco tempo, pode-se testemunhar uma perfeita harmonia entre palavra e gesto, palavra e ato, palavra e sentido. Pois, em geral, as palavras de uma pessoa, seu estado interior e suas ações físicas desenvolvem-se em planos diversos. Eles podem se complementar ou, às vezes, até certo ponto, estar em concordância mútua; no mais das vezes, porém, elas se contradizem, e em alguns momentos de extremo conflito, desmascaram-se mutuamente.”